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Opinião - Guerras, guerras e guerras discursivas: cancelar Dostoiévski?

Benedito Costa Neto Filho*


Já contei esta história outras vezes, mas ela sempre volta como um exemplo da cegueira que viraliza em épocas de guerra. Encontrei uma amiga alemã num mercado paulista na época da “Guerra das Malvinas” (ela, inclusive, não usava “Malvinas” e, sim, “Falklands”). Eufórica, ela me disse que não estava comprando maçãs, que eram argentinas. Assim, segundo ela, ajudava os ingleses. De fato, não apenas ela: a própria mídia brasileira (notadamente a revista Veja) parecia apoiar os ingleses.

O outro exemplo com o qual quero começar a pequena avaliação é um encontro recente. Dei aulas de português para um ucraniano que tentava morar no Brasil, um jovem de 26 anos. Como ele não tinha dinheiro, ensinaria português a ele e ele, russo e ucraniano para mim. Até aí, tudo bem. Mas, quando eu perguntava sobre o ucraniano, via que ele ficava irrequieto, quase ofendido. E explico a razão: para muitos jovens ucranianos e bielo-russos e demais jovens de ex-repúblicas soviéticas, é vergonhoso usar o idioma materno, pois o russo foi usado na escola e é uma língua “culta”. Caso o leitor não se lembre, a língua usada por Volodymyr Zelenski até há pouco tempo era o russo e não o ucraniano.

Então, comecemos por aqui: uma alemã deixando de comprar maçãs argentinas e um jovem que considera sua língua materna estigmatizada frente à língua do conquistador.

Recentemente, temos visto casos de boicote, cancelamento (nos dois sentidos atuais de cancelar), proibições etc., a produtos russos: temos o boicote a produtos culturais – exemplos são a proibição à leitura de Dostoiévski e o cancelamento de apresentações da cantora lírica Ana Netrebko, tanto na Rússia quanto fora dela, em Nova York, por exemplo –, o boicote à apresentação de atletas russos em campeonatos internacionais, e ainda o boicote a produtos de origem russa.

O boicote a produtos “inimigos” é uma tática de guerra bastante antiga. Quando os romanos da época de Cleópatra perceberam que poderiam ficar sem o trigo egípcio, resolveram atacá-lo. E assim ocorre hoje, similarmente, com gás, petróleo e soja. Evidentemente que o boicote a produtos do inimigo não tem função “apenas” econômica: se deixo de consumir o que de melhor ele tem em termos de produção cultural e técnica (seja literatura, música ou o esporte), trata-se de uma humilhação. E o boicote não ocorre em apenas uma via – o presidente americano Jimmy Carter pediu ao comitê americano que não enviasse atletas a Moscou, em 1980. O comitê acatou o pedido e ainda foi seguido por mais 61 países alinhados aos americanos. Qual o resultado prático disso? Mais medalhas para os países alinhados a Moscou, uma cicatriz que os jogos jamais viriam sarar, e um resultado discursivo que ecoa até hoje. E é bom para os governos ter o apoio de um sem número de pessoas que não entendem nada da verdadeira situação político-econômica desses países.

Embora o mundo soviético como minha geração tenha aprendido na escola – cujo teor “satânico” também víamos na igreja – tenha acabado, ainda se pensa a Rússia como o epicentro de um modo de pensar o mundo atrás da cortina de ferro. Atores famosos, como Ben Stiller, vão à Ucrânia saudar como herói o sujeito que até pouco tempo atrás era considerado um dos bastiões da extrema direita no planeta; Madonna se deixa fotografar com um vestido em forma de coração com as cores da Ucrânia; representantes do G7 têm tratado Zelenski como o coitado, espremido pelas forças russas num entrave geográfico qualquer, o que ele definitivamente não é. Evidentemente, toda guerra é injusta para a população civil que é a que mais sofre, e este pequeno texto não é uma defesa da política internacional de Putin, mas esses espetáculos midiáticos propagados por americanos como Stiller e europeus, como os representantes do G7, têm a profundidade da ação da minha amiga alemã num mercado paulista: recusar-se a comprar uma maçã argentina para ajudar a Inglaterra. Funciona? Em partes, sim.

E grande parte da mídia brasileira não ajuda em nada no entendimento da coisa toda. A CGJ chama a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) de “forças ocidentais” e descreve a invasão da Ucrânia como uma guerra entre Ocidente e Oriente. Podiam se dedicar mais e explicar isso melhor. Nem a OTAN é uma “aliança ocidental” tampouco a invasão da Ucrânia por Putin é uma guerra ocidental-oriental, a não ser que o jornalismo da Globo tenha mudado toda a noção de “ocidente” e “oriente”, e só eles saibam disso, e tenha mudado também a biografia de Zelenski e todo o interesse que a OTAN tem na região geográfica da Ucrânia.

A invasão decidida por Putin, a sangrenta invasão de Putin, não é algo que começou hoje, tampouco a situação da Criméia e a de territórios separatistas ucranianos. Putin sente-se ameaçado pelo cinturão de países que a cada década se aliam aos interesses americanos e de parte do continente europeu alinhado, por sua vez, aos interesses americanos. Boicotar Ana Netrebko ou os livros de Dostoiévski, que, aliás, mostrou os horrores das prisões russas, assim como o fez Tchekhov, não resolve em nada o sofrimento do povo ucraniano. Desconhecer a história recente da Ucrânia também não ajuda.

*Benedito Costa Neto Filho, doutor em Letras, é professor dos cursos de Comunicação, Pedagogia e da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo (UP).

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